Artigo publicado no Diariodoamapa.com.br no dia 07.12.2013.
O vento sopra forte nas mungubeiras
que crescem viçosas às margens do rio, plantadas para frear a queda da
ribanceira provocada pelas ondas que seguem o passar dos barcos. O desmatamento
da mata ciliar feito por antigos moradores, talvez sem perceber a gravidade de
seus atos, quase derrubava a casa que agora pertence à minha família e que protegemos
através de barragens e esteiamentos. Como único barulho a cortar o silêncio das
14 horas desta terça-feira 19 de novembro de 2013 está o rio jogando suas águas
contra a canoa e o barco aportados em frente à casa, aumentando seu volume
acompanhado pelo vento e por algumas araras que passam escandalosamente como se
tivessem sido espantadas por alguma besta. O galo canta todo faceiro debaixo de
nossa palafita exibindo a masculinidade de sua voz para as galinhas. Outro galo
responde do outro lado do igarapé. Uma das galinhas cacareja. Silenciaram... Ouço,
neste instante, o cantarolar de pássaros ao lado da casa na torre-escritório
que meu marido projetou e fez construir. Meu marido aprendeu a fazer a siesta
com os brasileiros. Neste momento ele dorme como um anjo repousando do trabalho
que fez com o empregado e, em frente a mim, só tenho o notebook e este rio majestoso,
encantado e encantador. Nesta mesma varanda, tomamos o café da manhã e o almoço
com a concorrência de pássaros, botos e ariranhas que fazem de seu percurso
pesqueiro um verdadeiro espetáculo diário. Que vida boa, sumano! Mas a cólica que
comecei a sentir esta manhã depois que joguei veneno em algumas cabas, (ou será
que foi o camarão que peguei aqui no rio e não cozinhei bastante?) insiste em
me fazer lembrar que, o rio, dependendo da ação do homem sobre a natureza pode
ser eterno. Mas, eu não sou eterna, por mais que eu queira me perpetuar através
do pensamento e da persistência.
Lembro da música “Tempo
perdido”, da Legião Urbana e reconheço o potencial da sensibilidade e da
inteligência de Renato Russo (como se este meu voto tivesse algum valor, pois
que o mundo já havia consagrado isso antes de mim).
Todos
os dias quando acordoNão tenho mais
O tempo que passou
Mas tenho muito tempo
Temos todo o tempo do mundo
Aliadas ao ambiente bucólico
deste meu tempo presente, estas letras riscam forte nas paredes dos labirintos
da memória trazendo à sensibilidade do pensamento lembranças de um tempo que
passou, da vida que passou e da juventude que escoou na sua esteira. Agora,
aposentada, parece que tenho todo o tempo do mundo. Ledo engano... Minhas três
vidas não me deixam ociosa, felizmente. Contribuí com o “destino”, digamos assim,
para ter estas três vidas as quais me refiro. Talvez, por medo que a
insuportável e viciosa rotina que envolve a maioria das pessoas envolvesse a
minha também. Uma vida no Brasil, outra vida na Europa... A terceira vida é a
mais simples e a mais gostosa: vivida na beira do rio onde tudo é primário e
selvagem. Onde, escutando o grito dos guaribas à tarde e de madrugada sinto a
atração ímpar que o mundo selvagem exerce sobre mim. Onde posso remar beirando
este rio, desafiando-o e sendo desafiada dando vazão às minhas origens
indígenas, que, embora dividindo meu histórico genético com as origens
libanesas e européias são as que prevalecem. Junto com meu marido e os
empregados, descobri que o trabalho no curral com os animais me agrada acima de
tudo. Nestas matas, onde cada passo precisa ser cauteloso para não se pisar em
uma cobra (e até dentro da casa!), e adentrar a floresta no lombo dos cavalos
requer constante atenção. Aqui, não se usa ferro elétrico, mas,
contraditoriamente à primariedade da natureza ao redor tenho uma máquina de
lavar louças, outra de lavar roupa, aspirador de pó e uma máquina de fazer pão!
Assim, sobra tempo para escrevermos e arranhar notas musicais com a garantia do
pão feito em casa enquanto exercemos o intelecto. Como unir o útil ao agradável
em um mundo selvagem? Com um certo conforto de primeiro mundo... (Pausa para desenfornar
o pão que meu marido começou).
Uma de nossas prioridades agora
é a descoberta das atrações dos outros municípios deste belo estado e a
freqüência a encontros musicais com a grata satisfação de encontrar novas
pessoas. Sair da toca é importante.
(Neste instante, o empregado chama atrás da casa
querendo saber sobre a troca de alguns tarugos. Esta é uma das facetas de nossa
vida na fazenda).
Chegar ao amadurecimento
equilibrada emocional e financeiramente foi uma vitória conquistada. Nasci na
hora em que o sol aparecia em frente à casa de meus pais, na Rua Cândido Mendes,
em um quarto que depois virou sala de jantar. Fui moleca de correr na rua,
brincar de “pira” e de “caí no poço” sem medo de arrastão e de assalto. Apesar
de encarar com frieza alguns acontecimentos nem sempre tenho tato para lidar
com a emoção. Não sei conviver com a mentira, nem com o fingimento.
Desculpem-me os puxa-sacos. Carreei muitos amigos e alguns inimigos com minha
franqueza. Não sou Made in China. Não acumulei riqueza. Sempre tive por lema o auto-respeito,
a liberdade e a paz de espírito. Investi nos estudos e em viagens. Estes são
meus bens e, com eles, não dou margem ao egoísmo e a avareza. Procuro ser
honesta e justa comigo mesma e com os outros. Não usurpo o direito dos meus
empregados. E sou conhecida assim, além da minha “chatice”, franqueza e alegria.
Vivemos em sociedade. O mundo se
agita muito fora daqui deste pedaço bucólico de rio do Norte do Brasil. E a
cada segundo tem uma novidade ou uma repetição de fatos.
A novidade deste momento é a
prisão dos “mensalistas” que se julgavam acima da lei, e a dor de cabeça do Mr
X, que imaginava que era o deus do empreendedorismo (como explicar essa palavra
para meu marido?)
O império X s’est cassé la
gueule (quebrou a cara) mas já estou aqui matutando com meus botões se esse
rapaz não vai aparecer de novo pelo Amapá ou alhures, vestido de santo (ou
barganhando mundos e fundos com possíveis “associados” de plantão) e se
apoderar de outras riquezas para encher novamente o bolso e tentar recuperar o
seu ego falido e machucado. Fico preocupada se nosso povo de memória curta e de
credulidade fácil ainda vai reeleger um certo pessoal que, na expectativa de um
processo judicial, continua a contar vantagens na cabeça dos simples.
Só nos resta torcer para que
vença o justo nesta terra de cegos e neste mundo de caras de pau oportunistas para
quem a pimenta no dos outros é refresco.
Neste instante, um homem bom e justo para com o seu
ideal de liberdade e fraternidade acaba de transpor o portão do repouso eterno:
NELSON MANDELA.
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