quarta-feira, 29 de janeiro de 2014

Peão andarilho

Publicado no Diariodoamapa.com.br de 29.01.014


"A roça é um vício, dona”. Foi a frase que ficou marcada depois da conversa com o empregado para cobrar o resultado de um trabalho que deveria ter sido feito na fazenda antes que as chuvas caíssem para valer. Uma espécie de andarilho que vive entre uma propriedade e outra da orla do rio, sem endereço próprio. Sem eira, nem beira. Uma espécie de roceiro de vida nômade. Se necessário, pode ser caseiro de passagem desde que seja autorizado a tirar um tempo do trabalho na propriedade do patrão pra trabalhar na sua roça.
Uma outra espécie de dor de cabeça para os proprietários. Não se deve exigir muita coisa dele, principalmente se o verão for propício para plantar suas deliciosas melancias. Assim é aquele remplaçant (substituto) que apesar de haver construído muitas cercas e plantado ou limpado muitos pastos fazendas acima, fazendas abaixo, só possui a rede de dormir surrada e a escova de dentes usadas como patrimônio ambulante. Incapaz de repregar uma tábua que seja num tugúrio qualquer que lhe emprestem para abrigar-se, sequer cogita a compra de uma panela de pressão. Usa mesmo é a panela dos patrões que a patroa lhe franqueou ou a panela da mulher de algum amigo. Afinal, nômade como um gitano, para que fazer mais despesas?
Um cinquentão que veio há mais de 30 anos de algum lugar, que já teve família e, que, segundo ele, por interferência da sogra largou a mulher e os dois filhos (ou foi largado) para nunca mais juntar escovas de dentes ou panos de bunda com alguém. Chova ou faça luar, todas as noites dirige-se ao vilarejo mais próximo distante alguns quilômetros do emprego atual dizendo que vai “assistir televisão”.
E lá vai ele neste momento, rio abaixo sob a chuva, remando a canoa dos patrões com um remo quebrado emprestado de algum vizinho para voltar só depois da última novela ou do último beijo na aventura mais recente. Com certeza, hoje vai encontrar alguma dama disponível para dividir o salário que ele acabou de receber. Tais passeios, a favor ou contra a maré, já lhe renderam uma pensão alimentícia e uma noite na cadeia. Coisa que lhe causa mais medo do que as lontras que encontra na orla do rio ameaçando embarcar com ele na velha canoa.
Sua liberdade não tem preço. Trabalhar fixo cuidando de búfalos e de pastos é um grande sacrifício. Toca o gado para o curral com visível má vontade. Maior é a cara feia para ordenhar as vacas. Não pesca, mas é bom para desentocar poraquês, não monta a cavalo, não sobe em açaizeiro e nem em bacabeira.
A horta que estava moribunda morreu de vez e as formigas tomaram conta do canteiro. A simples menção da patroa de não esquecer de dar comida aos cães e às galinhas constitui-se numa afronta para ele. Emprego fixo por mais de três meses, nem pensar. Não se apega, não tem medo, não quer compromisso com segundos e muito menos com terceiros.
Só quer viver o dia a dia esperando a noite cair, na ânsia de sair remando para ouvir lá e tagarelar aqui, e vice-versa. Nunca se viu alguém de conclusão mais ligeira e pensamento mais voraz. Por estas e outras razões, quando não for contratado para construir cercas, o bom mesmo é tê-lo como substituto, joker, curinga, dunga ou melé do trabalho nas fazendas".


segunda-feira, 27 de janeiro de 2014

Casemos. E engordemos juntos….

Publicado no Diariodoamapa.com.br de 07.01.014

Éramos tão magrinhos... Depois que casamos, relaxamos. O tempo em que ficamos em casa comemos, e, quando fazemos algum churrasco com os amigos sai tanta gula e cerveja que acabamos engordando. E adoramos aquela gordurinha da picanha, nham, nham. Sem falar nos restaurantes a quilo. Enchemos nossos pratos com todas aquelas delícias que, para um enxergar o outro que está sentado em frente é preciso olhar pelo lado do prato! Comemos tanto que até exageramos. Depois, voltamos para a cama, ligamos a tv e dormimos até o dia seguinte. Outra semana de trabalho no computador. Não tem como a barriga descer. Não podemos dizer que éramos elegantes quando éramos magrinhos. Tem muito gordinho elegante e feliz, como é o nosso caso. E dividindo os melhores prazeres da mesa. Não temos mais tempo para caminhar pela orla ou nas praças. Ficamos com medo de tanto assalto. Não temos tempo e nem coragem para nos aventurar em um passeio de bicicleta pela cidade. O trânsito ficou muito violento. Até para irmos ao comércio da esquina comprar um refri, vamos de carro. Além de ser mais rápido, ligamos o ar condicionado e vamos numa boa ouvindo nossas músicas preferidas longe daqueles vizinhos chatos que não gostam de barulho. Aí colocamos o som pra todo mundo escutar.... Numa boa. Esse pessoal que se arrisca a sair de bicicleta por aí ou é cego e surdo, ou não tem amor à vida. As poucas ciclovias que fizeram não oferecem segurança. Mas, para que nos preocuparmos com isso se é tão bom e seguro ficarmos quietinhos em casa na frente da televisão assistindo novela, vendo o programa do Huck, do Silvio, etc, ou, curtindo um game com a criançada? Vamos mandar buscar uma pizza e assistir a um super filme que, assim, estaremos mais tranqüilos e contribuindo para a obesidade e um futuro problema cardíaco. Você acha? Que nada, isto não vai acontecer conosco. Sabe como é: dizem que o Amapá está entre os Estados com maior índice de obesos do país. Será? Mas, olhe eu aqui na frente do espelho: não estou tão gordinho assim... Esse povo que vive malhando, caminhando, nadando deveria se mancar e comer mais. Um bando de magrelas! Mas, magreza também não é sinônimo de saúde. Então, deixa eu me conformar com minhas gordurinhas. Ohohohohoh....Aiiiii, estou com uma dor aqui no braço esquerdo. Uuuui, que dor de cabeça. Chame o médico, chame o médico, ou me leve pra UNIMED, pois estou começando a acreditar que essa história de sedentarismo e gordura vai acabar se virando contra mim. Amor..., amor..., não me deixe morrer.... Ainda tem aquele aniversário na casa do Douglas. Quero estar pronto praquele churrasco. Kkkkk. Se eu escapar desta, juro que vou começar a me mexer mais. (Personagens fictícios).

quinta-feira, 16 de janeiro de 2014

Espectros

E mais uma poesia. Publicada no Diariodoamapa.com.br, em 05.01.14

Espectros  (08.01.2010)  Veneide Bogusz


De casas, de homens, meninos, meninas,
de almas, de quereres, de desejos, de vontades.
Espectros...

De pessoas, de animais, de sonhos,
de gente, de amigos, de vidas.
Expectativas...

Desejos, amores, dores,
Solidão. Ainda assim,
Espectros...

Brindar, sorrir, cantar,
voltar, sumir, amar.
Expectativa...

Gostos e desgostos.
Sorrisos e prantos.
Encantos e desencantos.
Certezas...

Certezas incertas e insertas
nas dúvidas,
rasgando o véu da tenra
expectativa do amanhã
que esvoaça e se perde.
Pela vida...
Espectros...

Espectros de vida,
que se transformam em certeza de futuro
no sorriso inocente e espontâneo
de um infantil abraço promissor
da criança que te olha, e não te julga.
Que só te ama.

E S P E R A N Ç A...

Reflexões despertadas pela Natureza em uma alma irrequieta.

Artigo publicado no Diariodoamapa.com.br no dia 07.12.2013.




O vento sopra forte nas mungubeiras que crescem viçosas às margens do rio, plantadas para frear a queda da ribanceira provocada pelas ondas que seguem o passar dos barcos. O desmatamento da mata ciliar feito por antigos moradores, talvez sem perceber a gravidade de seus atos, quase derrubava a casa que agora pertence à minha família e que protegemos através de barragens e esteiamentos. Como único barulho a cortar o silêncio das 14 horas desta terça-feira 19 de novembro de 2013 está o rio jogando suas águas contra a canoa e o barco aportados em frente à casa, aumentando seu volume acompanhado pelo vento e por algumas araras que passam escandalosamente como se tivessem sido espantadas por alguma besta. O galo canta todo faceiro debaixo de nossa palafita exibindo a masculinidade de sua voz para as galinhas. Outro galo responde do outro lado do igarapé. Uma das galinhas cacareja. Silenciaram... Ouço, neste instante, o cantarolar de pássaros ao lado da casa na torre-escritório que meu marido projetou e fez construir. Meu marido aprendeu a fazer a siesta com os brasileiros. Neste momento ele dorme como um anjo repousando do trabalho que fez com o empregado e, em frente a mim, só tenho o notebook e este rio majestoso, encantado e encantador. Nesta mesma varanda, tomamos o café da manhã e o almoço com a concorrência de pássaros, botos e ariranhas que fazem de seu percurso pesqueiro um verdadeiro espetáculo diário. Que vida boa, sumano! Mas a cólica que comecei a sentir esta manhã depois que joguei veneno em algumas cabas, (ou será que foi o camarão que peguei aqui no rio e não cozinhei bastante?) insiste em me fazer lembrar que, o rio, dependendo da ação do homem sobre a natureza pode ser eterno. Mas, eu não sou eterna, por mais que eu queira me perpetuar através do pensamento e da persistência.
Lembro da música “Tempo perdido”, da Legião Urbana e reconheço o potencial da sensibilidade e da inteligência de Renato Russo (como se este meu voto tivesse algum valor, pois que o mundo já havia consagrado isso antes de mim).
Todos os dias quando acordo
Não tenho mais
O tempo que passou
Mas tenho muito tempo
Temos todo o tempo do mundo

Aliadas ao ambiente bucólico deste meu tempo presente, estas letras riscam forte nas paredes dos labirintos da memória trazendo à sensibilidade do pensamento lembranças de um tempo que passou, da vida que passou e da juventude que escoou na sua esteira. Agora, aposentada, parece que tenho todo o tempo do mundo. Ledo engano... Minhas três vidas não me deixam ociosa, felizmente. Contribuí com o “destino”, digamos assim, para ter estas três vidas as quais me refiro. Talvez, por medo que a insuportável e viciosa rotina que envolve a maioria das pessoas envolvesse a minha também. Uma vida no Brasil, outra vida na Europa... A terceira vida é a mais simples e a mais gostosa: vivida na beira do rio onde tudo é primário e selvagem. Onde, escutando o grito dos guaribas à tarde e de madrugada sinto a atração ímpar que o mundo selvagem exerce sobre mim. Onde posso remar beirando este rio, desafiando-o e sendo desafiada dando vazão às minhas origens indígenas, que, embora dividindo meu histórico genético com as origens libanesas e européias são as que prevalecem. Junto com meu marido e os empregados, descobri que o trabalho no curral com os animais me agrada acima de tudo. Nestas matas, onde cada passo precisa ser cauteloso para não se pisar em uma cobra (e até dentro da casa!), e adentrar a floresta no lombo dos cavalos requer constante atenção. Aqui, não se usa ferro elétrico, mas, contraditoriamente à primariedade da natureza ao redor tenho uma máquina de lavar louças, outra de lavar roupa, aspirador de pó e uma máquina de fazer pão! Assim, sobra tempo para escrevermos e arranhar notas musicais com a garantia do pão feito em casa enquanto exercemos o intelecto. Como unir o útil ao agradável em um mundo selvagem? Com um certo conforto de primeiro mundo... (Pausa para desenfornar o pão que meu marido começou).
Uma de nossas prioridades agora é a descoberta das atrações dos outros municípios deste belo estado e a freqüência a encontros musicais com a grata satisfação de encontrar novas pessoas. Sair da toca é importante.
(Neste instante, o empregado chama atrás da casa querendo saber sobre a troca de alguns tarugos. Esta é uma das facetas de nossa vida na fazenda).
Chegar ao amadurecimento equilibrada emocional e financeiramente foi uma vitória conquistada. Nasci na hora em que o sol aparecia em frente à casa de meus pais, na Rua Cândido Mendes, em um quarto que depois virou sala de jantar. Fui moleca de correr na rua, brincar de “pira” e de “caí no poço” sem medo de arrastão e de assalto. Apesar de encarar com frieza alguns acontecimentos nem sempre tenho tato para lidar com a emoção. Não sei conviver com a mentira, nem com o fingimento. Desculpem-me os puxa-sacos. Carreei muitos amigos e alguns inimigos com minha franqueza. Não sou Made in China. Não acumulei riqueza. Sempre tive por lema o auto-respeito, a liberdade e a paz de espírito. Investi nos estudos e em viagens. Estes são meus bens e, com eles, não dou margem ao egoísmo e a avareza. Procuro ser honesta e justa comigo mesma e com os outros. Não usurpo o direito dos meus empregados. E sou conhecida assim, além da minha “chatice”, franqueza e alegria.
Vivemos em sociedade. O mundo se agita muito fora daqui deste pedaço bucólico de rio do Norte do Brasil. E a cada segundo tem uma novidade ou uma repetição de fatos.
A novidade deste momento é a prisão dos “mensalistas” que se julgavam acima da lei, e a dor de cabeça do Mr X, que imaginava que era o deus do empreendedorismo (como explicar essa palavra para meu marido?)
O império X s’est cassé la gueule (quebrou a cara) mas já estou aqui matutando com meus botões se esse rapaz não vai aparecer de novo pelo Amapá ou alhures, vestido de santo (ou barganhando mundos e fundos com possíveis “associados” de plantão) e se apoderar de outras riquezas para encher novamente o bolso e tentar recuperar o seu ego falido e machucado. Fico preocupada se nosso povo de memória curta e de credulidade fácil ainda vai reeleger um certo pessoal que, na expectativa de um processo judicial, continua a contar vantagens na cabeça dos simples.
Só nos resta torcer para que vença o justo nesta terra de cegos e neste mundo de caras de pau oportunistas para quem a pimenta no dos outros é refresco.
Neste instante, um homem bom e justo para com o seu ideal de liberdade e fraternidade acaba de transpor o portão do repouso eterno: NELSON MANDELA.

Uma coisa que adoro.

Uma coisa que adoro.
No inverno, fica tudo assim. Foto:D.B.

Os lagos

Os lagos
Pegamos nossos remos e varejões e saímos com muito cuidado para não triscar nos jacarés e sucuris. Foto: Veneide