Sete horas desta manhã
de janeiro chuvoso. 25° na beira do rio. No Norte do Brasil, onde a temperatura
atinge acima de 30°, uma baixa de 5° faz muita gente tirar a roupa mais quente
do armário. Tudo tranqüilo na cabeça da ponte. As touças de mururé descem o rio
com a vazante para voltarem depois, com a enchente.
O bando de mergulhões se aproxima
rápido com uma coreografia natural peculiar seguindo seu líder. A maneira como
freiam com os pés, repentinamente, desde que localizam um cardume provoca admiração
ao espectador. Alimentados e molhados, param adiante sobre os frechais de
cercas ou sobre as cabeças de tarugos permanecendo com as asas abertas até o
próximo voo.
O boto atrai a atenção com sua
magia e beleza fazendo os mergulhos habituais de pesca. É o terror do pescador
porque fura as malhadeiras para atacar os peixes indefesos deixando buracos
enormes causando duplo prejuízo: um, porque come o alimento que o pescador
deveria levar para casa, outro, porque danifica o seu instrumento de sustento.
Para as virgens dos vários
recantos escondidos da Amazônia, o boto ainda é a desculpa utilizada quando dão
com os burros n`água ou, quando desgraçadas pela animália existente em algum
próximo, até mesmo da própria família, a barriga começa a crescer. Segundo a
lenda, o boto se transforma naquele belo homem de olhos azuis vestido de branco
e de chapéu na cabeça, que entra nas casas como quem não quer nada, vindo não
se sabe de onde mas que, na verdade, vem namorar e acaba engravidando as moças
das redondezas. Diz ainda que, quando o estranho vai embora deixa um cheiro de
pitiú no ambiente e desaparece no ar, ou melhor, na água, sem ser identificado.
Só então desconfiam que aquele belo homem era um boto. Aí, é um Deus nos
acuda...A boa Maria, que vem de Macapá mas que nasceu e embarrigou a primeira
vez na Ilha de Caviana, quando dorme na fazenda fecha todas as venezianas e
coloca dentes de alho no sutiã, com medo do boto. Para que a noite se alongue,
basta pedir-lhe que conte uma história de boto. Ela solta a língua e repete as
lendas de sua terra natal. Entre elas, a história de que uma “buta” deitou-se
na rede com o irmão dela e quase o encantou. Os rapazes adoram atiçar a Maria
e, no final, todos acabam rindo.
Durante o dia, a maré sobe trazendo
consigo os restos de um animal morto que os urubus tentam devorar por cima. As
piranhas já se encarregaram da parte submersa.
Os mururés continuam na sua
labuta diária de subir e descer o rio, no embalo da correnteza, sem remar e sem
precisar de outro meio de transporte para se locomover a não ser a própria água.
No entanto, sabe-se lá que espécies de criaturas levam consigo! Quase se escuta
a música silenciosa composta por suas pesadas raízes no atrito das profundezas
das águas...
O silêncio só é cortado pela
canoa que, ao bater na madeira da lancha faz um barulho baixo e ritmado e por
um grupo de tetéuas barulhentas que bailam por cima da ponte. Verdadeiro
espetáculo. Sem necessidade de ir à Ópera de Paris, de Lyon ou de Douai. Aqui,
tem de tudo. O italiano Verdi comporia maravilhas com toda esta riqueza.
No fim da tarde, depois de voltar
da roça com os últimos jerimuns e maxixes o empregado remplaçant (substituto)
entra com uma enfiada de acaris e apaiaris pescados ao lado da casa numa rara e
agradável surpresa. Depois, vai tomar seu banho no rio e repete o cerimonial
habitual para seu passeio noturno na fazenda vizinha distante dois quilômetros
de nossa casa, ou encontrar uma paquera que não pretende botar a culpa da
barriga no boto. Vai fazer concorrência aos mururés, num descer e subir do
rio...remando.
A noite chega depois de um dia
chuvoso. Do outro lado do rio, os guaribas gritam chamando as fêmeas. Preparam-se
para o encontro. A água continua a descer num vai-e-vem interminável.
Os mururés se despedem de nossas
vistas para se agarrar ao primeiro porto que encontram pelo caminho. Quisera eu
poder escorregar como eles sobre as águas!
(Em 2015, depois do fechamento
das barragens, as águas de inverno do baixo Araguari já não subiam nos campos
como outrora. Em abril deste ano de 2016, quando deveriam estar a meio metro de
altura nos pés da palafita residencial, mal chegavam no meio da ponte da frente
da casa. Para melhor compreensão a ponte em frente à casa tem trinta metros de
comprimento e a profundidade do rio na cabeça da ponte é de seis metros. As
águas do rio estão recuando na direção de seu talvegue próximo a cabeça da
ponte em novembro, o que só acontecia em janeiro. A foz do Rio Araguari fechou
sim, mas a causa principal foi a construção dessas duas últimas barragens que
impedem a vasão das águas que expulsavam os sedimentos na sua foz fazendo o rio
correr mais forte para a vala que vai até o Rio Gurijuba).
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